Assumptos do dia
Hospitaes e asylos
Ha 24 annos, um alumno da Escola Medica, ao terminar o curso e na defeza da sua theze inaugural, entre as diversas proposições d’ella sustentou que os hospitaes não tinham razão de ser e que a sua existencia se explicava apenas pela imperfectibilidade do organismo social.
Esta proposição pareceu então revolucionaria, quasi heretica, e ainda hoje não recebeu fóros de orthodoxa, antes pelo contrario parece que o principio da hospitalisação se accentua cada vez mais, senão como uma prova de progresso pelo menos como signal evidente de uma necessidade irremediavel.
Apenas ha a notar n’esta corrente de ideias uma pequena modificação, mais de forma ou de nome que de essência[.] Os hospitaes passam a denominar-se sanatorios, palavra mais sonora e agradavel, mas que não altera no seu intimo a natureza das coisas.
Indubitavelmente tem-se feito progressos na construcção dos edificios destinados a recolher a humanidade enferma, mas esses melhoramentos, por mais importantes que sejam, não tendem a atacar o mal pela raiz, e a hospitalisação continua attestando a grandeza da miseria que lavra no fundo social.
Todos os dias se estão organisando, não só lá fóra mas no nosso paiz, hospitaes, asylos, estabelecimentos de beneficencia, que revestem todas as fórmas e que revelam duvida [sic] um inexgotavel espirito caritativo, tão engenhoso como evangelico, avido de acudir a todas as eventualidades da desgraça e do infortunio. Seria imperdoavel injustiça se não tributassemos o mais fervoroso preito de admiração [a] essa exuberancia de amor do proximo, que tanto consola e que tanto concorre para desvanecer a impressão do tédio e de tristeza que nos deixa o espectaculo quotidiano da malvadez incorrigivel.
As casas de beneficencia multiplicam[-]se e a philantropia não deixa, na sua faina incessante, de introduzir novos processos ou de aperf[e]içoar os actuaes, mas tudo isto é insufficiente, e quantos mais albergues se franquearem á pobreza, mais augmenta o numero dos necessitados. O paiz antigamente era um enorme convento e hoje vae-se transformando n’um immenso hospicio, o que demonstra quanto o systema até agora adoptado está longe de produzir os resultados que se anteviam, antes parece uma provocação á desgraça ou á incuria.
Longe de nós propôr a extincção completa dos hospitaes, o que seria absurdo, porque similhante desideratum só se poderia realisar n’um estado so[c]ial que attingisse o maximo grau de perfectibilidade, derramando o bem estar equitativamente por todas as classes sem repugnantes differenças de nivel. Os hospitaes deveriam, porém, restringir a sua esphera de acção e servir tão sóments [sic] para acudir a acudir a accidentes inesperados ou a casos de extrema necessidade. Seriam apenas postos de saude, com enfermarias annexas, onde se recebessem transitoriamente, para assim dizer, aquelles a quem uma doença repentina atacasse ou que de todo em todo não podessem ser tratados nos seus domicilios.
A concorrencia de tantos hospitaes e asylos demonstra-nos por um lado a extrema carencia de meios das camadas populares e por outro lado um tal ou qual desapego de familia. Parece dominar na philantropia o espirito do collectivismo, deixando á sociedade o encargo exclusivo da doença, da miseria, da orphandade. Quem estudasse bem a fundo o que se passa nos asylos, veria que nem sempre é a necessidade que bate ás suas portas e que muitas vezes não se recorre áquelle auxilio senão como um expediente para aligeirar o fardo da vida. Nem todos teem a comprehensão dos seus rudes deveres para levar ás costas a cruz do sacrificio.
Pondo de parte estas excepções, que chegam ás vezes a ser odiosas, na generalidade o grande factor é a miseria. E que não hade succeder assim, se as classes pobres vegetam nas mais precarias condições? Mal alimentadas, mal vestidas, não teem nas suas humildes habitações, faltas de hygiene, o ar e o sol indispensaveis. Como é que podem tratar-se n’essas pocilgas as molestias infecciosas, se essas mesmas molestias são a resultante da insalubridade do domicilio?
Tudo isto se debellaria ou attenuaria pelo menos, se se atacasse o mal nas suas causas e não nas suas consequencias, desde o momento em que se modificasse o ambiente physico e moral em que respiram as classes populares. E não se pense que a ideia que aventamos é um ideal utopico, uma empreza praticamente irrealisavel e que só se pode tomar como devaneio de pura phantasia humanitaria. Um exemplo, e um exemplo do mais elevado alcance, virá em apoio da nossa doutrina, confirmando a possibilidade da nossa these se converter na realidade dos factos. Houve tempo em que a exposição das creanças era acto trivialissimo, que chegou a tomar proporções assustadoras. A justiça era impotente para pôr cobro a similhante infamia quando S. Francisco de Paula imaginou que cicatrisaria a ferida, creando as rodas, instituição que foi acolhida com o mais fervoroso applauso e que prestou, nos seus inicios sobretudo, bastantes serviços.
Reconheceu-se porém que a roda não era senão um mal substituindo outro mal, tendo o inconveniente de auctorisar e legalisar e perversão dos costumes, sem evitar sequer a grande mortalidade das creanças. Levantou-se então uma energica propaganda contra as rodas dos expostos, sendo entre nós um dos mais denodados combatentes d’essa instituição o dr. Thomaz de Carvalho. Foi extincta a roda; acabara-se com uma grande vergonha; o abandono das creanças expostas é quasi nullo, e providencias mais racionaes substituiram vantajosamente a obra, aliás extremamente meritoria, de S. Francisco de Paula. Os subsidios de lactação concorrem para que as mães, outr’ora desnaturadas, se prestem hoje a crear os seus filhos.
Ora este systema, convenientemente adaptado já se vê, poderia produzir eguaes beneficios nas outras circumstancias [sic] da vida. Se as enormes sommas que se gastam nos serviços hospitalares fossem distribuidas proporcionalmente por todas as familias realmente necessitadas e soffredoras, a população dos hospitaes e dos asylos diminuiria consideravelmente.
Emquanto, porém, se não alterarem as actuaes condições da exi[s]tencia, emquanto se não adoptarem medidas profundamente radicaes, já se vê que o hospital e o asylo hão-se ser tão necessarios como é o pão para a boca.
Ao menos que a organisação d’estes estabelecimentos seja tão perfeita que deixe o menos possivel a desejar.