O principio desta aplicação reside no facto seguinte: quando uma corrente atravessa uma solução salina, opera uma decomposição do sal dissolvido, indo o metal para o pólo negativo e o acido para o positivo, tal como acontece na galvanoplastia. Tanto às substancias decomponíveis pela electricidade como aos elementos que ela separa deu-se o nome de electrolytes. Faraday deu o nome de ions às partes componentes dos electrolytes , significando por essa palavra grega a faculdade de deslocação de que gosam por via da corrente electrica. O corpo humano funciona funciona em presença desta como um lectrolyte, os tecidos são embebidos de soluções salinas de que depende a conductabilidade do corpo. A passagem de uma corrente galvanica por este produz uma alteração electrolytica, donde a destruição parcial de tecidos, a qual, dada uma certa intensidade da corrente, se nota nos pontos em que ella incide particularmente e se aproveita, por exemplo, para a destruição systematica de tumores, etc. Não é assim porém a acção que pretendemos analysar e que constitue a nova electrolyse medicamentosa. Nesta a a introducção da corrente faz-se por meio de soluções de varios corpos, que se decompõem à passagem daquella, dando-se trocas de ions entre as referidas soouções e o organismo.
Colloca-se de cada lado do tronco uma esponja embebida b’um soluto de iodeto potassico e fazendo passar atravez dessas esponjas a corrente de uma pilha, o potassio vae para o pólo negativo atravessando a pelle e o iodo fica na solução, emquanto do lado opposto (pólo negativo) é o iodo que penetra nos tecidos, ao passo que o potassio é retido no liquido que serve de electrolyte.
Este phenomeno, na apparencia muito simples e de uma importancia duvidosa, foi uma revelação para a arte medica.
D’antes soppunha-se pouco activa a penetração de medicamentos por effeito da electricidade; pelo contrario, experiencias recentes mostram quanto ella é efficaz, podendo considerar-se a electrolyse como um methodo aperfeiçoado e seguro para a insinuação de agentes medicinaes, determinando quer effeitos locaes, quer geraes, conforme a intensidade e a duração da corrente.
A este respeito são deveras concludentes as experiencias do dr. Stéphane Leduc. Este investigador serviu-se numa d’ellas como electrode de uma solução de permanganato de potassio, applicando-a á parte interna da orelha de um coelho. Nota-se depois à passagem da corrente que, na parte correspondente ao pólo negativo, subsiste um ponteado escuro, não destacavel pela lavagem e devido à infiltração das glandulas da pelle pelo oxydo de manganez resultante do desdobramento do permanganato de potassio e levado para o polo negativo. Por outro lado não ha alteração sensível da pelle debaixo do electrode positivo.
Se n’uma destas experiencias o auctor se serve de substancias toxicas como o acido prussico, a estrychnina, a absorção intima pode fazer-se em tal quantidade que a morte sobrevem em curtos instantes.
A intuscepção dos medicamentos executa-se segundo o sentido da corrente, de maneira que, se o experimentador se serve de um electrolyte, por exemplo, do sulfato de estrychnina no pólo positivo, aparecem as contracções tetanicas caracteristicas do envenenamento, a mesma substancia empregada no cathode ou pólo negativo não dá o minimo estremecimento. O sr. Stéphane Leduc mostra esta interessante propriedade electrolytica por intermedio de um dispositorio elegante, que lembra as singelas e evidentes demonstrações de Tyndall. Agrupa dois coelhos sobre a mesa de experiencias e coloca em cada um dois electrodes, de algodão embebido em soluções respectivamente de sal marinho e de sulfato de estrychnina, sobre os quaes se aplicam as placas que conduzem a electricidade. A corrente dirigindo-se do pólo positivo para o negativo entra pelo lado esquerdo de um dos animaes, e sae pelo direito do outro, ligado ao primeiro por um conductor. Ambos sofrem o contacto das substancias chimicas dissolvidas, mas na separação dos ions por acção da corrente voltaica, de um lado a estrichnina, que se dirige para o pólo negativo, difunde-se no organismo e mata o animal; do lado oposto, como a solução venenosa se acha da parte do cathode (negativo), o animal não recebe ions strychnicos e não sucumbe.
Estes factos significam quanto é facil d’esta sorte introduzir no corpo humano á vontade um medicamento qualquer. A pratica deu a Stéphane Leduc justificação d’este principio , porque conseguiu curar a contração dolorosa da face (tic nevralgico), resistente em varios casos á intervenção cirurgica, pela applicação de um ion apropriado de um solução salicylica.
A medicação electrolytica é pois um achado e difficilmente se comprehende, segundo a expressão feliz de Leduc, como para actuar n’uma região limitada do corpo, se tenha de espalhar por todo o organismo um veneno energico, nocivo a tecidos mais delicados e mais nobres. Portanto a electrolyse está destinada a ter um exito inapreciavel, todas as vezes que se trata apenas de provocar uma influencia local, no rheumatismo articular, nas nevralgias, nas contracturas, etc.
Todos conhecem a repugnancia que he em receber o iodeto de potassio, ao qual se atribuem vulgarmente maleficios que tornam alguns intoleravel. O processo electrolytico permitte o emprego da medicação iodada sem inconveniente para o estomago, ou para a pelle, resultante da absorpção do medicamento.
As experiencias clinicas feitas entre nós pelo professor Virgilio Machado confirmam este modo de ver, antes mesmo de se tornarem conhecidos os curiosos trabalhos de Leduc. As communicações feitas pelo insigne electrotherapeuta portuguez à Academia Real das Sciencias e cujo theor conheciamos do seus trabalhos de laboratorio, os quaes temos a fortuna de acompanhar desde antiga data, induzem exactamente no mesmo sentido das descobertas do medico francez, nas mãos do qual a electricidade se torna um agente curativo por excelencia.
Ainda ha pouco a produção do somno por este methodo inteiramente arte nova deu perfeitos resultados n’um ensaio feito em coelhos, vendo-se por effeito da corrente atravessando o cerebro o animal deixar-se vencer por um adormecimento profundo, a ponto de o picarem sem dar acordo, como se estivesse chloroformizado. Logo depois, interrompida a corrente, o coelho abriu os olhos e levantou-se como se nada houvesse succedido.
Taes são, por ora em experiementação laboratorial e na pratica medica, os resultados bastante promettedores da ionisação, a qual traz com a rapidez propria da energia electrica que a conduz uma verdadeira revolução na arte de curar e que tão estimada deve ser pelos medicos e pelos doentes.
J. Bettencourt Ferreira
J. Bettencourt Ferreira - "Actualidades - Pela sciencia - a electricidade no tratamento das doenças – os choques electricos e a revolução na therapeutica por meio das correntes electricas – o transporte de medicamentos por estas correntes – electrolyse antiga e moderna – ionisação – novo systema de applicação medicamentosa - resultados praticos - o somno electrico"
in Diário dos Açores
de 26 de Outubro de 1907, nº. 4922, p. 1-2 (col. 5-6; 1). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=400.