A «Morgue»
Quando ha vinte annos, por occasião do assassinato de um guarda de policia, começou a insinuar-se pela Imprensa periodica a conveniencia de se estabelecer em Lisboa «uma morgue», publiquei no Diário de Notícias, de 23 de Março de 1879 um folhetim, no qual explicava, com o socorro de Maxime du Camp, o que fosse, e para o que prestasse a «Morgue», de Paris; qual a origem d’este nome, e como elle, applicado ao recinto onde se expõem os cadaveres em determinadas circumstancias, representava já um verdadeiro neologismo.
Concluia por lembrar de um modo indirecto, como se poderia chamar ao projectado estabelecimento de Lisboa, sem termos necessidade de adoptar um nome francez. Fazia, porém, tudo isto sem grande alardo, sem recriminações irritantes, nem pretenciosas demonstrações, entendendo que a propria exposição era bastante ao effeito que me propunha: - mostrar que o vocabulo «morgue», em si mesmo, longe de exprimir originalmente a applicação dada em Paris, ao recinto onde se expunham os cadaveres em certas condições, não era mais do que uma expressão ampliada no sentido, para o fim de designar, por analogia neologistica, uma estação de policia medica, recentemente creada na capital de França, e que por sua novidade, não tivera até então vocabulo correspondente nos diccionarios d’aquelle paiz.
Procurando em 1879 como que protestar contra a facilidade infeliz com que circulam na imprensa tantos vocabulos peregrinos – francezes principalmente – em prejuizo e descredito do idioma patrio, mal cuidava que da Imprensa diaria, onde mil desculpaveis cousas os tornam frequentes, o vocabulo «morgue» viria a pretender introduzir-se no fim de 1899, em nossa legislação.
Appellei pois para s. ex.ª o sr. ministro da justiça, fundado nas mesmas razões com que Thomas, o emphatico auctor do «Ensaio sobre os Elogios», descreveu as iniludiveis obrigações e altas responsabilidades do ministro que sobraça aquella pasta.
- É verdade que o escriptor francez mereceu, como artista da palavra, a critica e a alcunha do caustico Voltaire, mas como pensador e moralista politico, ainda ha de vir o primeiro que lhe não reconheça o criterio.
No dia 4 do corrente mez appareceu, pois, á venda na livraria Tavares Cardoso, e em beneficio do Albergue das creanças abondonadas, um opusculo meu, a que a redacção d’este «Diario» me fez a fineza de referir se; opusculo de que tive a honra de enviar um exemplar a s. ex.ª o ministro, bem como ás doutas aggremiações que mais immediato interesse teem no asumpto; – a dos advogados e a das sciencias medicas.
N’este opusculo, reeditando o folhetim de 1879, lembrei «tres» vocabulos, qualquer dos quaes prestaria muito melhor, em meu entender humilde e incipiente, para designar o que se pretende, do que o termo «morgue», que não tem origem alguma «scientifica» que lhe recommende a preferência. – Lembrei «Deposito» – «o deposito» – pura e simplesmente; lembrei «Necroterio», vocabulo composto com todo o sabor de um termo portuguez pelos nossos irmãos do Brazil, sobre uma base etymologica de proveniencia grega, e que muito de molde deveria contentar os que querem a recente instituição «enfeitadinha». E lembrei tambem que este vocabulo tivera parecer favoravel do nosso antigo conselho superior de instrucção publica. Lembrei, emfim, o vocabulo «Obituario», usando-se entre nós da mesma liberdade que usaram os francezes, tornando o extensivo a todos os serviços que contendem com a parte da medicina legal que criou a «morgue», como é facil de verificar em qualquer «Diccionario de sciencias medicas».
Mas o termo «deposito», que tem tanto valor como o termo «morgue», porque ambos são applicados por extensão, não é bastante scientifíco. – Tambem «morgue» o não é senão por adopção meramente arbitraria. E n’este mesmo caso estaria o vocabulo «obituario», que, ainda assim, já tinha por si maior aproposito etymologico, alem do exemplo da sciencia medico-legal franceza.
Resta, portanto o «Necroterio», que tal como o explicou já mui lucidamente o competentissimo lexicographo, o sr. dr. Candido de Figueiredo, pode perfeitamente ajuntar, entre nós, á sua significação originaria a que o termo «morgue» é destinado a exprimir, pela simples rasão de que a sciencia medico-legal brazileira «o creou» para esse preciso effeito.
É pois do sr. ministro da justiça que se deve continuar a esperar o deferimento da pretenção que tem por fim, não, privar a sciencia medico-legal portugueza de um termo menos scientifico, porque a sciencia medico-legal brazileira construiu esse termo com todo o criterio exigivel, apoiando-o sobre uma base etymologico-grega, mas antes livrar a legislação patria de uma verdadeira nodoa. Esta responsabilidade o nobre ministro não quererá decerto assumil-a, apesar de se ter conformado com a que riscou o portuguesissimo vocabulo «tabellião», coevo da monarchia, do vocabulario patrio, para se lhe substituir o termo «notario», que não é senão outra «francezice» mais, apoiada sobre um arbitrario querer de um Luiz XV.
Mas s. ex.ª que é o sustentaculo da justiça, o mantenedor conspicuo da integridade e da pureza dos textos, tanto por obrigação do cargo, como por natural compleição, ha de remediar, decerto, todos estes senões, naturalmente filhos da descuidosa attenção com que se copiam para os nossos projectos de lei todos os brocados estrangeiros, onde se vae buscar estas peregrinas novidades.
Este assumpto não tem importancia só pelo seu simples e immediato objecto, mas pelas futuras funestas consequencias de que é symptoma. Affirmar que «os inglezes introduziram a palavra morgue na sua lingua» porque outra não tiveram que lhes servisse ao intento, pode parecer que se está falando, não direi já com quem não sabe que differença ha entre nacionalisar um povo um vocabulo, e servir-se d’elle tal qual o toma do idioma onde o vae buscar, mas que differença ha entre «palavra» e «vocabulo», entre «lingua» e «idioma», quando se trata de um assumpto em que a philologia e a linguistica teem voz e direito a ser respeitadas tal qual a sciencia medico-legal, tanto na propriedade e no aproposito das expressões, como na applicação dos vocabulos.
E se parecer isto, não faz mal. Fio que o sr. dr. Candido de Figueiredo não se ha de indispôr, como eu me não indisporia, com o digno relator do projecto convertido em lei dos serviços medico legaes portuguezes, por semelhante bagatella.
Mas ai dos filhos e dos netos dos que, por simples capricho pseudo scientifico, teem agora a facil coragem de arcar com a opinião dos que ingenuamente quereriam vêr o idioma patrio mais presado e mais respeitado!
Dos filhos e dos netos d’esses é que é para lastimar o destino, que não merecerão sofrer, pela imprevidencia de seus progenitores!
Gomes de Brito