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Texto da entrada (ID.649)

A Sciencia não mente. Enganar-se, sim, pode. Mentir, nunca!

A Academia de Sciencias de Portugal não iria prejudicar irremediavelmente os seus creditos e os do seu paiz, affirmando principios e deduzindo conclusões que não fossem baseados no mais rigoroso criterio scientifico.

Pois bem!

O phenomeno da passagem  da terra pela cauda do cometa de Halley, annunciado para a manhã de 19 do corrente, tem interesse immediato unicamente para os homens de sciencia e, especialmente, para os astronomos.

Muita gente espera aquelle dia, ou antes, aquella noite, para vêr o astro em toda a sua magnificencia.

É um engano.

Desde o dia 16 ao dia 21 d’este mez, ninguem, entre nós, verá coisa alguma que se relacione com aquelle cometa, pela mesma razão porque ninguem vê astros junto do sol que os offusca. Apenas alguma rara e inoffensiva estrella cadente, correndo de um para outro ponto do ceu e deixando perdido o seu rasto luminoso, virá destruir a monotonia da noite, denunciando-nos a existencia de corpusculos cosmicos gravitando pelas immensidades infinitas, e sufficientemente imprudentes para virem queimar-se na passagem pela nossa atmosphera como a borboleta queima as azas ao atravessar a chama que a attrae.

De resto, as ultimas observações levam nos a crer que nós nem chegaremos a ser attingidos pela cauda do astro.

E que fôssemos? Que fôssemos mesmo roçados pelo seu proprio nucleo, o que nos succederia? Provavelmente – nada.

Nós já chocámos em 1872 com o proprio nucleo de um cometa, e ficámos quites com o magestoso espetaculo de uma chuva de estrellas cadentes, muito mais deslumbrante e mais inoffensivo do que o dos fogos de artificio em noites de arraial.

Nós já atravessámos em 1861 a cauda de um cometa e ninguem deu pelo phenomeno.

Basta ter a noção do que seja um d’estes corpos celestes, para se vêr, desde logo, que não podia deixar de ser assim.

Compõem se, como se sabe, de nucleo e cauda.

O nucleo é a parte mais importante.

Para se fazer idéa da dua constituição, supponha-se em ponto muito maior, tão grande quanto a imaginação possa abraçar com os termos de comparação ao nosso alcance, supponha se uma d’essas nuvens de mosquitos que, n’uma tarde de verão, enxameiam junto da agua estagnada. Supponha se que as dimensões d’estes variam da poeira insignificante á grandeza de tremoços, á de bolas de bilhar, e, finalmente, á de elementos com algumas toneladas de peso, mas em numero tanto maior quanto menores elles forem. Ter se ha assim uma grosseira idéa do que seja o nucleo de um cometa.

Imaginemos agora um corpo constituido d’esta forma , correndo velozmente atravez do espaço e encontrando a terra no seu caminho. É facil de prever o que succederia. Cada um dos seus componentes era como que um projectil, animado de velocidade tal, que, ao penetrar na nossa atmosphera, se manifestaria como estrella cadente, consumindo se pelo incendio, como faisca tirada de pederneira, e augmentando a massa do nosso globo com as cinzas resultantes da sua combustão.

Pelo que respeita á cauda não será talvez difficil encontrar lhe phenomeno comparavel.

Todos teem visto, n’um dia sereno, levantar se no horisonte um fumosinho tenue e que que esvae, esbate e perde na limpidez da atmosphera. Pois a cauda de um cometa é em todo semelhante: uma emanação saida do nucleo e perdendo-se na vastidão do espaço.

Apenas, como differença, sabe-se que aquelle provém de algum fogo ou casal, na luca diaria e constante pela conservação da vida, ao passo que esta se suppões provir de forças , ainda apenas entrevistas, dimanando do fogo central d’onde irradia o movimento e a vida – o Sol. Mas, em compensação, observa se que a sua tenuidade e a sua subtileza são tão grandes, que, em presença dellas, o ar que respiramos é mais compacto do que o aço comparado com a nossa propria atmosphera, que assim nos protege como couraça absolutamente impenetravel.

Para vêr, pois, se ha realmente alguma razão para temer a approximação do cometa de Halley, basta notar;

1º Que o nucleo d’este astro nos passa à distancia minima de 23 milhões de kilometros, e que, portanto, são tantas as probabilidades de vir ao encontro do nosso globo, como probabilidades ha de um expresso norte americano vir chocar com o rapido do Porto;

2º Que seria tão absurdo temermos qualquer perigo proveniente da passagem pela cauda de um cometa, como estarmos em um quarto forrado de paredes de aço com kilometros de espessura, e receosos que o vento nos perturbasse, ou que particulas arrastadas por esse vento atravessassem os póros de todo aquelle aço e viessem produzir acções toxicas sobre o nosso organismo.

Finalisando.

A Academia das Sciencias de Portugal não pode deixar de protestar contra os abusos da credulidade popular tendentes a cultivar o alarme geral, e que só poderiam perdoar se quando fundamentados na ignorancia, o que nem por isso deixaria de ser altamente lamentavel e profundamente triste.

A magnificencia de Deus reconhece-se nas manifestações variadissimas da Natureza, e o engenho do homem na comprehensão dos preceitos que as regulam.

Lisboa, 1 de maio de 1910.


Referência bibliográfica

[n.d.] - "O cometa de Halley - A Academia de Sciencias de Portugal affirma ao paiz o seguinte" in Diário dos Açores de 11 de Maio de 1910, nº. 5662, p. 2 (col. 3-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=649.



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Astronomia

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