As floras das ilhas despertam o maior interesse, já pelo caracter especial que revestem, já pellas difficuldades que surgem quando se pretende explicar a sua origem. O estudo das formas endemicas d’essas floras, para ser completo, tem de sair dos estreitos limites da botanica pura, e não póde ser feito sem o concurso da biologia e da geologia, ás quaes cumpre dar a razão de certos factos, dignos, por certo, das attenções dos naturalistas. A hypothese das creações independentes, que tantos adeptos teve outr’ora, era um meio facil de explicar a presença de organismos especiaes em varios pontos do globo, mas que não podia conduzir-nos á interpretação das affinidades que se notam entre muitos d’esses organismos, ou entre certos organismos da nossa época e outros que só apparecem hoje no estado fossil.
O facto d’uma ilha surgir do seio das aguas em virtude de erupções vulcanicas realizadas durante seculos, não constitue obstaculo a que ella receba pouco a pouco as producções das terras visinhas.
As aves, os ventos e as correntes maritimas transportam ás vezes a grandes distancias as sementes de muitas especies, as quaes se encontram condições favoraveis podem germinar e produzir novos individuos susceptiveis de adaptar-se aos novos paizes em que nasceram. Investigações realisadas em ilhas cuja vegetação tinha sido destruida por erupções vulcanicas, mostram que os repovoamentos actuaes se podem fazer por intermedio dos referidos agentes, sendo licito suppôr portanto que elles desempenhassem tambem um papel bastante importante na primitiva dispersão das especies.
Admittindo os geologos que durante o mioceno, e muito antes do inicio do periodo glaciario, reinava nas regiões arcticas um clima bastante mais quente do que actualmente, póde-se d’ahi inferir que essas regiões seriam povoadas então de espécies muito differentes das de nossos dias. Ao avisinhar-se o referido periodo, e ao baixarem as temperaturas, começariam essas especies a immigrar lentamente na direcção sul, emquanto as plantas mais meridionaes se iriam concentrando pouco a pouco nos paizes dos tropicos, por não encontrarem nas terras que occupavam anteriormente á sua existencia. Ao elemento floral que suppõe haver partido do norte, e que na sua lenta expansão no sentido meridional teria vindo occupar uma vasta extensão de territorios revestida antes por outra flora, deu o sr. Engler o nome de arctico terciario.
Segundo o professor Drude, o elemento arctico terciario no decurso do seu desenvolvimento separou-se em quatro regiões: a região atlantico-mediterranea, a região do Ponto e Oriente (Asia interior), a região da Asia oriental e a região do norte do Mexico, da California e da Virginia, tendo a primeira grandes analogias com a segunda, e offerecendo as duas ultimas maiores affinidades entre si do que as duas primeiras. Como é sabido, os archipelagos da Madeira, das Canarias e dos Açores, embora constituam tres districtos floraes caracterisados por uma flor especial, fazem parte da vasta região atlantico mediterranea.
Accrescenta o mesmo professor que foi sómente no plioceno, ou mais exactamente ao findar o periodo glaciario, que as areas adquiriram pela primeira vez as suas formas geraes actuaes. Com effeito, se as baixas temperaturas que durante esse periodo se fizeram sentir repelliram ainda mais para sul o elemento arctico terciario, é licito suppor que sómente na volta do calor, e após novas migrações realisadas d’esta vez na direcção septentrional, podesse o mesmo elemento estabelecer-se finalmente nas areas que ainda hoje occupa. Em muitas partes das mesmas areas, os typos tropicaes e boreaes apparecem associadas aos representantes da flora arctico-terciaria, o que deve ser uma consequencia ou de facilidades de adaptação inherentes a certas especies, ou então de modificações occorridas nas propriedades biologicas das formas primitivas, em virtude talvez de influencias climatericas. Na região floral mediterranea, o loureiro, a murteira, a figueira e uma palmeira (Chamaerops humilis), são especies representativas de familas tropicaes da epoca actual.
O estudo da flora fossil da épocha terciaria fez descobrir um variado numero de especies agora extintas na Europa, mas que têem representantes na vegetação endemica actual dos dos archipelagos atlanticos. O Sideroxylon baliicum e a Clethera helvetica, especies ambas miocenas, acham-se representadas respectivamente pelo Sideroxylon Marmulano e pela Clethera arborea, peculiares da Madeira, a Olocea Heerii, do mioceno e plioceno, pela O. foetens da Madeira e Canarias; e as Persea Braunii e speciosa e a Myrica pseudofaya, do mioceno, pelas Persea indica e Myrica Faya, da Madeira, Canarias e Açores. O Sideroxylon, da Madeira, e a Argania, de Marrocos, são as unicas sapotaceas que vivem presentemente na região mediterraneo-atlantica, emquanto a Dracaenites, do eoceno, pode muito bem ter sido o tronco do dragoeiro da Madeira, Canarias e Cabo Verde. Dos generos Ilex, Apollonias, Virburnum, Notelaea, etc., encontram-se restos fosseis nas formações pliocenas europeas, que parecem corresponder a especies disseminadas hoje pelos archipelagos atlanticos.
A hypothese sustentada por Heer em 1855, da existencia d’um antigo continente, a Atlantida, unindo outr’ora a Europa, a Africa e a America e do qual faziam parte os archipelagos atlanticos, baseava-se em alguns dos factos que deixamos apontados. Sob estes climas insulares, dizia o citado naturalista, não perturbados pelo resfriamento glaciario, os descendentes da flora terciaria ter-se-hiam mantido mais facilmente, e as suas especies e os seus generos tornado representativas. As affinidades europeas das floras das ilhas seriam o resultado da visinhança geographica e da communicação com a Europa se haver mantido por largo tempo.
Que a regularidade dos climas insulanos e a baixa latitude dos archipelagos atlanticos houvessem concorrido para a conservação das especies terciarias, é admissivel; o que se não póde acceitar, porem, comprovada como está a origem vulcanica das varias ilhas que constituem os mesmos archipelagos, é a hypothese das migrações pela via terrestre. Se tivesse havido outr’ora ligação entre a Europa ou a Africa, e as Canarias, os Açores e a Madeira, seriam os generos de plantas representados nas floras d’estas terras muito mais ricas em especies do que são, e não se daria o caso de nem um dos pequenos quadrupedes que habitam os continentes proximos, ser indigena em qualquer das ilhas dos tres archipelagos. Embora os mares não constituam um obstaculo insuperavel ás migrações das plantas e de muitos animaes, é certo, todavia, que difficultam consideravelmente os transportes, havendo mesmo grande numero de especies zoologicas e talvez botanicas, a que os agentes a que atraz nos referimos não podem servir de vehiculo.
Conclue
Carlos A. Menezes
Carlos A. Menezes - "Origem provavel da vegetação das ilhas atlanticas"
in Diário dos Açores
de 31 de Agosto de 1910, nº. 5752, p. 1 (col. 1-3). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=759.