Ninguém poderá certamente contestar a importancia que reveste para nós – paiz colonial e étape quasi obrigatoria dos viajantes que pela via maritima regressam do Oriente – tudo quanto dissér respeito aos elementos de combate contra a peste bubonica. Subordinada ao titulo de Defeza Sanitaria da Europa contra a peste, o sr. dr. Julio Gonçalves acaba de publicar um valiosissimo trabalho em que analysa e discute com elevada competencia os pontos de hygiene e prophylaxia internacional que nos apresenta a litteratura, já hoje relativamente vasta, da peste bubonica.
Não é certamente n’uma rapida meia duzia de linhas que pode ser ponderadamente apreciado o justo valor da obra a que nos referimos. O livro, lêmo-lo com o interesse que devem sempre merecer os trabalhos de largo alcance e significação, e não podemos fazer mais que recommendar tambem a sua leitura a todos aquelles que, já pela sua situação official, já pelas suas tendencias de espirito, devem ou desejam obter com pouco dispendio de tempo e de dinheiro uma noção segura de quanto se tem luctado contra um flagello que como a espada de Damocles está constantemente suspensa sobre a cabeça da Europa.
Começa o auctor por analysar as circumstancias em que póde dissiminar-se o terrivel morbo, estudando sob esse ponto de vista o que elle chama a triade biologica rato-pulga-homem. Ao conhecimento exacto das condições em que se propaga a epidemia corresponde o maior criterio na maneira de a evitar e combater. A pulga é considerada o agente transmissor da peste de rato para rato, e é exclusivamente por ella que a doença se transmitte tambem do rato ao homem. Demonstra tambem brilhantemente o sr. dr. Julio Gonçalves que a peste se não transmitte de homem para homem, nem as epidemias são constituidas por casos humanos como termos de uma progressão geometrica.
“Directa ou indirectamente, affirma elle, todo o caso humano é um caso accidental, susceptivel de filiação em caso murino.”
E conclue que no dia em que não for mais possivel a bacillemia no rato, a especie humana estará finalmente salva da peste bubonica, accrescentando todavia que estamos ainda muito arredados de tal desideratum.
É ao povo britannico, com o seu genio commercial, que cabem as maiores responsabilidades na moderna disseminação universal do morbo. É em navios seus, procedentes dos portos australianos, asiaticos e africanos, que a peste tem conseguidoa generalisação actual. O auctor não esquece, porém, que a Inglaterra honrosamente assume e resgata essas responsabilidades, porque ao seu genio, tambem, activo, recto, sobrio, intelligente, superior, devemos hoje o que de melhor no combate sanitario contra a peste se conhece.”
Seguidamente, estuda o illustre homem de sciencia os focos originarios da epidemia, e estabelece, a largos traços, as bases de uma moderna geographia pestosa. Os focos comtemporaneos, e as provaveis vias de accesso pelas quaes a peste pode invadir, merecem-lhe uma attenção especial. Ao mesmo tempo que aponta as portas abertas á infecção, analysa a sua importancia e destroe alguns erros que durante muito tempo foram geralmente admittidos.
O livro termina por apresentar as bases de uma prophylaxia local efficaz, não resistindo nós ao desejo de transcrever aqui a sua ultima pagina, que resume a conclusão a que o auctor chegou no seu brilhantissimo estudo:
“A base predominante de toda a lucta intelligente e racional visando ao desarraigamento das epidemias, resume-se a tentativas energicas de desratização.
Não é somenos valia a educação das massas n’esse sentido. O aspecto social da lucta contra o rato, por uma propaganda insistente e tenaz, é a melhor garantia do bom exito na empresa. Compenetra o povo dos perigos do morbo pestifero, convencel-o da necessidade de se defender por um esforço proprio, empenhar sociedades de beneficencia e particulares n’um mesmo ideal, são condições de triumpho, facil de obter pela extincção dos roedores.
E essa extincção, longe de temtada apenas em periodos de afflicção, em tempo de epidemias, urge seja sustentada, exista ou não exista a peste; basta, para isto, o facto de ser o rato um parasita prejudicialissimo, devorador de riquezas incalculaveis. A não nos compenetrarmos d’esta verdade, todo o esforço intermittente, por mais energico, acaba por se inutilisar, aproveitando-se da menor hesitação na lucta, o rato prolifera. De 1900 a 1906, diz Klasato 4800.000 de roedores foram mortos em Tokio, sem que haja indicios de a especie ter apoucado. Calculam-se, por ahi, os sacrificios necessarios.
E esses sacrificios, se proveitosos são a todo o agrupamento urbano, mais imperiosamente se impõem ás cidades maritimas que manteem relações de permuta com regiões mais ou menos contaminadas.
Os nossos votos são, pois, que os governos se compenetrem da necessidade de impor taes medidas com força de lei.
Para o que a cidade de Lisboa diz respeito, atraz annotamos os perigos que ameaçam, como o primeiro porto de escala, no acesso da navegação do Atlantico sul à Europa. O apparecimento da peste nos Açores, mais imminente veiu tornar esse perigo. Poderam bem as responsabilidades em que incorrem os que teem a seu cargo a defesa sanitaria da nação, para que futuros arrependimentos não embarassem a sua digestão regalada. É banal o preceito que mais vale prevenir que remediar, e é talvez por muito banal que todos por elle passam e encolhem os hombros, a instancias da commoda e facil tranquilidade dos momentos felizes.
(Do Dia)
[n.d.] - "A peste bubonica - Defesa sanitaria da Europa contra o flagello"
in Diário dos Açores
de 5 de Setembro de 1910, nº. 5756, p. 1 (col. 1-3). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=767.