O estudo dos efeitos de diversas ordens de radiação solar nos organismos está na ordem do dia. Do interesse que tais estudos tem para os homens de sciencia e para os praticos e, geralmente, para os que seguem e aproveitam os progressos das sciencias medicas, dão ideia os numerosos trabalhos, contribuições e memorias, apresentados nos ultimos meses ás academias, sobre este assunto, precisando cada vez mais uma aplicação que, desde tempos muito antigos se fazia empiricamente e hoje se pratica de uma maneira metódica, regular, guiada por uma tecnica mais perfeita e portanto de exito mais seguro.
Os congressos de Fisioterapia e particularmente o ultimo Congresso de Cannes (abril de 1914), sobre os tratamentos maritimos, puzeram devidamente em foco a excelencia de emprego das radiações do Sol, para a cura de numerosas doenças, das que mais afligem a humanidade, especialmente a tuberculose.
Neste Congresso, que foi presidido pelo Principe de Monaco, tratando se da acção benefica da atmosfera maritima, do proprio Oceano, da luz que atravessa normalmente este e aquela, foi sobretudo a influencia deste ultimo elemento, porque é sobretudo a ele que, em grande quantidade de casos, por vezes dos mais dificeis e espectaculosos, se deve a cura final, como o prova um bom numero de observações medicas.
No seu discurso inaugural, o notavel observador que é o principe do Monaco, afirmou que, para empregar ultimamente os recursos admiraveis que o mar põe ao alcance dos terapeutas e dos pacientes, é de uma consideravel utilidade determinar bem os elementos fornecidos por ele e a natureza exacta desses elementos, de que depende a sua força curativa, que é uma verdadeira vix medicatrix, a qual, por forma nenhuma, se póde desprezar, sem cometer enorme desperdicio.
Muitos sabios de elevada cotação prestaram, durante esta reunião, o seu valioso concurso a esta investigação. Ali apareceram d’Arsonval, Daniel Berthelot e outros, que ajudaram a concluir que a helioterapia maritima, ou cura pelo sol á beira-mar, é hoje um tratamento de escolha para certas formas de tuberculose geral e o local, principalmente para as chamadas – tuberculoses cirurgicas – (tuberculoses osseas, ganglionares, artropatias, etc.) e ainda para as externas ou cutaneas (escrofulas).
A localização deste Congresso maritimo, em Cannes, é já de si uma indicação eloquente, porque é por certo, em vista desse poderoso e complexo agente terapeutico que o Mediterraneo constitue e na proximidade de estabelecimentos importantes, que aproveitam dessa excelente disposição natural, como o sanatorio de Oelnitz, em Nice e o Hospital Sabran, que se póde realmente formar ideia da excelencia desse meio, para debelar muitas e crueis doenças, contra as quais se levanta por toda a parte uma activa e generosa campanha.
Porque não ha de reunir-se aqui, em algumas das nossas bem assoalhadas praias, um desses congressos sabios, que viriam “de visu” reconhecer as admiraveis situações que, para as tentativas medico-cirurgicas, neste sentido, oferece o nosso extenso litoral, a foz dos nossos grandes rios, a nossa “Riviera”, como pomposa e quase ironicamente lhe chamam alguns, ainda mal conhecedores talvez da sua enorme importancia pratica?
Para mostrar o poder inigualavel dessa energia sobre diferentes funções vitais, poderiamos recorrer a muitas experiencias, entre as quais, por mais recentes e mais scientificamente conduzidas, nos referiremos de preferencia ás do dr. Miramon de Laroquette, director do hospital d’Argel, ultimamente apresentadas á Academia das Sciencias de Paris.
Trata-se da insolação prolongada de animais pequenos, como porquinhos da India, cuja alimentação e curva de temperatura é susceptivel de variar com a estação do ano e, portanto, com a quantidade maior ou menor de calor recebido. Pode-se dizer que estas experiencias demonstram uma noção que poderiamos ter pelo calculo, ácerca da nutrição pelo calor e da utilização imediata dessa especie de energia, que nos vem do astro diurno.
O facto desta acumulação de energia calorifica explica a razão da exiguidade de alimentação, que se nota em certas tribus indigenas, por exemplo, no sul d’Argelia, mesmo noutros pontos d’Africa. São populações que vivem diariamente expostas ao sol e se contentam com uma pequena ração de alimentos carbonados (farinaceos, tamaras), os quais lhe fornecem apenas um numero de calorias insuficiente para transformar em trabalho.
Dois observadores notaram tambem que, na Abyssinia e em Java, a ração de que se nutrem geralmente os naturais é extremamente reduzida. Estes factos explicam que os jejuns misticos ou de formalismo religioso, sejam praticados e suportados por habitantes de paises quentes, como a India. Esse gentio, de raças pigmentadas, acostumado a viver sob um sol ardente, absorve pela pele uma grande quantidade de energia, na forma de calor radiante, emanado do Sol, a qual supre em parte aquela que deveriam tirar de uma alimentação mais abundante e que a sua escassa refeição quotidiana lhes não pode fornecer.
É pois um facto estabelecido por observação e experiencia que a exposição demorada ao sol fornece ao organismo, de um modo directo, uma certa força, que ele armazena aproveita e transmuta em diversas formas de atividade permitindo-lhe reduzir a ração alimentar.
Este facto de observação e experimental é cheio de consequencias importantes, no ponto de vista da higiene e da terapeutica.
Explica a utilidade e a razão de ser de certas prescrições e dietas, cujo emprego racional restaura a saude do paciente, em muitos casos vitima de intoxicações e de causas depauperantes, para o qual uma sobre-alimentação seria um exagero nefasto, ao passo que um repouso prolongado aos raios solares, com um regime de sobriedade, vem a ser um tratamento, na verdade, reparador.
Este facto dá tambem a razão das diferenças da alimentação de inverno e de verão, assim como as que naturalmente existem entre o modo como se alimentam os povos do Norte e os meridionais, e justifica que os alentados filhos da Gran-Bretanha sejam mais exigentes de comida, para um determinado esforço, do que os homens do Sul, os peninsulares, por exemplo, que com pouco se contentam, executando rudes tarefas.
Sob a vigencia do tal principio pode a medicina actual, consciente e racionalmente, impor determinados regimes, combinando as curas do Sol (“Helioterapia”), com as dietas vegetarianas ou outras, conforme o estado dos doentes, a epoca do ano, advertindo que aquelas se podem fazer em qualquer quadra, dispondo de meios apropriados e até sem nenhum instrumental, por uma exposição graduada e sistematica, que não exclue, aliás o emprego de medicações convenientes.
É opinião dos especialistas neste ramo da arte de curar que a helioterapia, sempre activa por toda a parte, consegue porém os resultados mais completos sob o clima maritimo.
É facil presumir que, tanto a helioterapia maritima, como na montanha, é um sistema de cura susceptivel de larga aplicação e desenvolvimento no nosso paiz, onde de norte a sul abundam lugares que predistinados para a sua aplicação e cuja escolha não seria dificil, desde que os profissionais entendem que é nas praias meridionais que esta especie de tratamento melhor esperança de exito pode dar, pela quantidade de luz e doçura relativa dos climas. Seria portanto imperdoavel desleixo deixar simplesmente á Natureza, se um leve esforço de tecnica, sem uma diligencia de caracter scientifico sem uma investigação superficial, ao menos, a questão dos tratamentos maritimos em Portugal onde tudo nos convida a executalos e onde os sanatorios para esse fim estabelecidos, teriam, com toda a probalbilidade uma grande frequencia e seriam em pouco tempo uma riqueza nacional.
J. Bettencourt Ferreira - "Crónica scientifica - Os tratamentos pelos agentes fisicos – O sol e o Mar – A energia radiante solar e a alimentação – Factos de observação e experiencia"
in Diário dos Açores
de 10 de Abril de 1915, nº. 7099, p. 1 (col. 1-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=888.