Quem não se recorda dos primeiros passos dados pela aviação? Ha alguns annos apenas que esses passos começaram, primeiramente como as tentativas de uma creança que mal de segura, que se move a mêdo, apoiando-se a mão que não a deixa cahir, animando-se com o sorriso que se desliza nos labios maternos, sorrindo tambem quando vence o temeroso movimento; depois com mais alguma firmeza em tentativas cada vez mais ousadas, embora contadas de frequentes accidentes.
Assim foi a aviação, desde que em uma pista em Paris, Santos Dummont iniciou as primeiras tentativas dando a entrever aos espiritos arrojados o futuro que poderia vir a ter o mais pesado que o ar.
Quantos progressos desde então realisados e tambem quantos acidentes que victimaram mais de um temerario aviador que se lançava no espaço á mercê da sua boa ou má estrella! Mas, está escripto que a humanidade não realisa qualquer progresso sem pagar uma boa quota parte da contribuição que esse mesmo progresso exige, qual monstro voraz que não se contenta com poucas victimas e está sempre de fauces abertas para devorar os que tentam invadir os seus dominios. E os dominios na aviação consistem n’essa atmosphera que envolve a terra e que a custo deixa entrever todos os seus mysterios, todos os seus segredos.
No emtanto, o homem é tenaz; às primeiras tentativas vacilantes sucederam outras mais firmes e mais temerarias, registrando-se os vôos mais arrojados, os records mais notaveis em altura e em extensão. De metros passou-se a kilometros, até que um dia o aviador Bleriot transpoz em um aeroplano o canal da Mancha, passando do litoral da França ao da Inglaterra, feito verdadeiramente arrojado, que lhe valeu as mais freneticas e enthusiasticas acclamações, collocando o seu nome muito acima de todos os outros.
Foi um triumpho, rapidamente obscurecido por outros mais arrojados, a ponto de se imaginar não ser difficil fazer a travessia do Atlantico, desde o litoral da America ao da Europa ou vice-versa. Essa travessia não se realisou ainda, mas não estão os aviadores praticando verdadeiras proezas n’essa guerra aerea, que é uma das innovações da conflagração actual nos seus methodos de guerrear?
Na verdade, negar os progressos realisados pela aviação seria uma loucura, no entanto, ha um problema que ainda não está resolvido: é o problema da estabilidade. O aeroplano que copiou a ave, tanto quanto uma machina pode imitar um organismo, está ainda á mercê de uma rajada de vento mais forte. Como evitar isso? Não poucos estudos se téem feito a esse respeito e, segundo se affirma, é muito possível que o problema da estabilidade se resolva brevemente por meio de um apparelho inteiramente novo e ao qual dois engenhosos inventores francezes deram o nome de gyroptero. Ceci tuera cela, disse Victor Hugo, o que, no caso presente quer dizer: o gyroptero fará desapparecer o aeroplano com a vantagem da estabilidade. Mas como? Perguntar-se-ha.
Conhece o leitor a semente do sycomoro, um grão similhando um pequenino chapeu encimado de uma asa ligeira, graciosamente recurvada, quasi tão fina, tão delicada e tão transparente como a da libélula insecto orthoptero tambem conhecido pelo nome de libelinha? Pois bem lançada ao ar essa semente tão singularmente disposta, desde que tende a descer, a aza começa a redemoinhar, demorando a queda e regularisando-a.
No entanto, sob a attracção da gravidade, o pequeno grão termina por cahir, mas é facil de conceber uma força opposta que o faça levantar do solo, deixando-lhe a faculdade de revolutear rapidamente durante a ascensão.
Ora, é precisamente a operação que realisa o apparelho a que alludimos e que tem o nome de gyroptero. Este tem todas as similhanças com um violino de doze metros de comprimento, mas cujo braço é ôcco como a caixa, tendo uma especie de turbina, que gira rapidamente e desempenha o papel de ventillador, impellindo o ar aspirado para o braço. Se este é recurvado na extremidade, torna-se evidente que o aparelho tenderá a girar sobre elle proprio como no caso do torniquete hydraulico, que se colloca nos repuxos de agua.
Sendo a velocidade do ar que sahe do braço de 100 metros por segundo, é facil de conceber que a rotação do apparelho será rapidissima e n’estas condições se cahisse de um logar elevado, nenhuma duvida ha que estabilidade se conservaria.
Inversamente, pondo o motor em movimento e inclinando o apparelho de modo a atacar o ar sob certo angulo, o gyroptero elevar-se-hia tal como o velho papagaio ou como o moderno aeroplano.
Notemos, porém, que durante o trajecto aereo, o novo apparelho gira sobre si do mesmo modo que a semente do sycomoro. Um aviador situado á superficie deve por conseguinte ser levado por um movimento analogo e revolutear com grande velocidade, o que seria um pessimo systema para viajar e reconhecer ao mesmo tempo o caminho a seguir.
Prevendo os inventores este caso, trataram de lhe dar remedio, assegurando ao excursionista por este meio de locomoção uma situação menos precaria.
Não são ainda bem conhecidas todas as minudencias de construção que devem regularisar a marcha do novo apparelho. Tudo isto, porém, não passa de mera questão de mecanica, com que não nos devemos prender.
Segundo se affirma, os inventores já construiram um primeiro modelo do seu apparelho, que em breve experimentarão, esperando resultados concludentes, ou pelo menos de ordem a obter com uma ou outra modificação o objectivo que téem em vista. É muito possivel que assim seja, pois o apparelho, no dizer de todos os que o viram, é engenhoso e merece o exito que os seus auctores esperam.
Agora uma pergunta: o gyroptero será a ultima palavra da locomoção aerea? Certamente não, podendo-se conceber para longas viagens apparelhos baseando-se em outros principios.
A guerra actual demonstrou a precisão que se pode esperar de um canhão lançado um projectil sobre um alvo definido. A velocidade e a rapida rotação do projectil sobre o seu eixo asseguram maravilhosamente a estabilidade da massa, a ponto dos ventos mais violentos não a desviarem senão muito fracamente da sua linha.
Espiritos arrojados não hesitam em proclamar que está ali unicamente o porvir das viagens aereas. É certo que, combinando a velocidade e o angulo do tiro, poder-se-ia enviar de Roma a Paris, por exemplo, um projectil que atinja o fim desejado.
Tudo isto parece romance de Julio Verne, não é verdade? Pois tambem se pensa em resolver o problema empregando a deflagração da polvora ou ainda outro meio qualquer. Não é phantazia, é theoria, embora d’essa theoria á pratica vá grande distancia, um abysmo mesmo.
A guerra actual deflagrou tambem o genio inventivo do homem, que parece não ter limites.
Nonio - "Chronica scientifica - A aviação desde o seu inicio até ao estado actual – Os progressos realisados em poucos annos – O “Ceci tuera cela” de Victor Hugo – Após o aeroplano o “gyroptero” – Como a semente do sycomoro deu a idéa do novo aparelho – Depois do “gyroptero” que virá? Os projecteis Julio Verne"
in Diário dos Açores
de 18 de Maio de 1915, nº. 7129, p. 1 (col. 1-3). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=898.
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