Raro será o espirito que não se sinta dominado pela mais profunda emoção, perante a enorme influencia exercida pela sciencia na guerra actual, essa guerra que é um crime contra a civilisação, contra todos os progressos, mas que arrasta na sua esteira todos os homens de valor scientifico, podendo de qualquer modo contribuir para acrescer o numero de armas offensivas e defensivas.
O laboratorio tornou-se o colaborador forçado das oficinas e arsenaes militares. Todas as nações beligerantes esperam da sciencia, senão milagres, pelo menos inventos e descobertas de tal que dominem e paralisem a acção do inimigo. O proprio publico volta-se insensivelmente para os homens da sciencia como quando se voltava para a magia e para a alchimia d’outros tempos e de ambas esperava a solução da pedra philosophal, que devia operar a transmutação dos metaes em ouro; ou descobrir o elixir de longa vida.
Agora o elixir é muito diverso. Pretende-se que os homens de sciencia preparem nos seus cadinhos, provetas e matrazes o elixir da morte e da destruição para mais depressa attrahir a victoria e com ella a paz.
Estas reflexões vêm a proposito do que se está effectuando entre as principaes nações belligerantes. Na Inglaterra, por exemplo, existe quasi desde o começo das hostilidades, uma commissão de guerra, posta á disposição da Academia Real de Sciencias e que está encarregada do estudo das questões relativas ao armamento scientifico e do exame das soluções propostas por iniciativa particular ao ministerio da guerra e ao almirantado.
Não se julgue que esta commissão seja uma sinecura. Sir Oliver Lodge, principal da Universidade de Birmingham e homem de sciencia de grande auctoridade, que tem o seu nome ligado aos progressos da telegraphia sem fio, declarou ha dias que a commissão de que faz parte tem-se occupado de alguns inventos interessantes, de processos novos que já são utilisados como por exemplo nos submarinos.
Sir Oliver Lodge não foi explicito; não quiz aventurar-se n’um terreno perigoso de descobrir ao inimigo os meios de que a sua patria se serve para vencer. Usou, portanto, de todas as reservas necessarias para não descobrir segredos que interessam à defeza da patria, dando apenas a entender que a Inglaterra está empregando meios de ataque e defeza que, em breve darão signal do seu valor. Que meios serão esses? Não nos impacientemos.
É muito de crêr qe em breve sejam do domínio publico.
Outro homem de sciencia inglez, sir William Ramsay, o illustre chimico de que a Inglaterra tanto se orgulha, tambem pertence á alludida commissão. Não podia deixar de ser assim. Os seus descobrimentos ácerca dos novos gazes do ar – o helio e o argo – são considerados como os mais importantes do seculo. As suas obras, como por exemplo a que se intitula “Os gazes da atmosphera e a historia dos seus descobrimentos” fazem auctoridade no mundo scientifico.
Pois bem, este homem, que pouco mais tem de sessenta annos, alto, secco, ligeiramente curvado como quem passa longas horas a fazer experiencias, interrogado acerca dos gazes asphyxiantes, declarou:
- Não me suprehendeu o emprego d’esses gazes pelos alemães; é uma arma chimica a que me referi por occasião da guerra russo-japoneza. Recordo-me até que o embaixador do Japão em Londres telegraphára para Tokio, a um dos meus discipulos, professor da Universidade d’aquella capital, a minha opinião a tal respeito. Tratava-se, porém, de gazes de effeitos rapidos, mas sem consequencias nocivas, actuando sobre os olhos e sobre as palpebras. Determinavam abundante secreção lacrimal, obscureciam a vista; impediam um homem de se bater e nada mais. Este processo não era deshumano e não dava logar á morte por asphyxia, como succede com os gazes asphyxiantes empregados pelos allemães.
Como perguntassem a sir William Ramsay se trabalhava em preparar algum gaz mais terrivel nos seus effeitos, o illustre sabio inglez respondeu:
- Não, não trabalho, em cousa alguma n’esse sentido. A questão mais importante para mim, a que me absorvia por completo todas as atenções, era a do algodão. Se vim a Londres foi para assignar e enviar uma representação ao governo, a fim de declarar o algodão contrabando de guerra. Era uma questão de primeira importancia, de vida ou de morte. Este desideratum está felizmente realisado. Declarado como está o algodão contrabando de guerra, é materia prima de que os allemães vão sentir a falta para o fabrico das suas munições. Se desde o começo da guerra, o governo inglez tivesse tomado a resolução de declarar o algodão contrabando de guerra, já ha muito que esta tremenda lucta teria findado. Indirectamente contribuimos para a retirada russa. Se não fosse a longanimidade britannica, há ha bastante tempo que a Allemanha estaria exhausta de munições, que tem por base o algodão. A Allemanha, só para as suas munições, gastava 1.090 toneladas de algodão por dia que, se não recebia directamente lhe eram fornecidas por via indirecta. Similhante estado de cousas, tão prejudicial para a causa da Inglaterra e dos seus alliados, não poderia ser tolerado. Ainda bem que se conseguia arrebatar ao inimigo uma arma terrivel.
Estas declarações do grande chimico inglez vêem evidenciar a contribuição dada pelos homens de sciencia para que o conseguimento da victoria seja mais facil ao paiz a que pertencem.
Sem duvida, os homens de sciencia allemães procedem do mesmo modo, ou antes, ja haviam procedido, attendendo á poderosa preparação da Allemanha para a guerra e aos meios que possue para combater os adversarios. Se não teve maior inventiva, pelo menos foi mais perspicaz, diga se em abono da verdade.
Continuemos, porém. Encontrando-se Marconi em Londres, não faltou quem o quizesse entrevistar ácerca dos serviços que a telegraphia sem fio, de que é inventor, poderia prestar.
(Marconi diz que foi em missão a Londres. Fala da telegraphia sem fios como meio de por em contacto pessoas e tropas, esclarece a artilharia, indicando os pontos para onde deve convergir as pontarias. Lembra que antes da guerra foi encarregado pelo governo italiano para preparar varios serviços telegraficos. Refere ainda que o seu ultimo desenvolvimento cientifico está já a ser utilizado pelo exercito italiano, mas não refere qual. Os jornalistas referem então um outro cientista italiano, Quarini, que no dizer de varios jornais, teria descoberto a maneira de deter e fazer explodir o torpedo de um submarino, antes de atingir o alvo visado. A isso Marconi responde que não pode formar opinião acerca dessa pergunta.)
Nonio - "Chronica scientifica - A sciencia na guerra – O que ella tem collaborado no sentido de acrescer o armamento scientifico – Commissão de sabios – Sir William Ramsay e o algodão – Marconi e a telegraphia sem fio – O que elle declarou – Não duvidemos da sciencia"
in Diário dos Açores
de 11 de Outubro de 1915, nº. 7248, p. 1 (col. 1-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=963.
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